"Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas." (Bernardo Soares)
publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Terça-feira, 29 Março , 2011, 11:04

7.ª Parte


Por vezes, é na desordem que encontramos a serenidade. Foi o que me aconteceu. Todo o meu “eu” está enquadrado no mudo, neste momento. A estranheza da minha situação é confortável para mim. Estamos no hospital, a dirigirmo-nos para o quarto do meu pai. Não temos conversado sobre ele, fingimos não nos lembrarmos. Todos os que por ela passam não a admitem na sua realidade: ela é só minha, e parte de todos, simultaneamente. Chegamos ao quarto do meu pai e entreolhamo-nos verdadeiramente pela primeira vez em alguns dias. O seu rosto pede desculpa, mas não sei por que motivo. Senta-se e a fatalidade das coisas da vida atingem-me de rompão. A sua visão fica vidrada e fixa num ponto arbitrário no horizonte. Aproveito a ausência de comunicação para fazer um pedido:

– Gostava de falar com ele de novo, de dizer-lhe o que sinto: que o amo e o adoro para sempre. Podes fazer isso por mim?

Enquanto pondera, enrola obsessivamente uma madeixa de cabelo. A sua tez de porcelana desaparece e o seu corpo é um cadáver lívido e sem graça. O seu encanto esfumara-se. Responde finalmente:

– Sabes que não posso fazer isso. Sabe-lo desde o início.

Não quero acreditar. A fúria toma conta de mim e lanço-me a ela, colocando as mãos no seu pescoço de cisne. Ela respira calmamente, a sua face imperturbada. As veias no meu pescoço tornam-se salientes e atiro-a contra o chão.

– Por que estás aqui se nada podes mudar?! – grito; a minha voz irada rompe com o pano da normalidade.

E, de súbito, os seus olhos virgens são maculados. As lágrimas da mágoa irrompem descontroladamente e molham o pavimento. De ter conseguido tornar cadivo o próprio destino, não me orgulho. Queria tanto tornar realidade algo que sabia não ser possível que destruí o alicerce sobre o qual quase a totalidade da minha vida assenta: ela. A única pessoa adulta com a qual alguma vez comunicou traiu-a. Eu traí-a. Será que, bem no fundo, a amei porque pensei que concretizaria os meus desejos ou emendaria a minha existência? Não, não é a verdade. O meu amor por ela é um axioma, não precisa de ser provado nem demonstrado. Simplesmente existe, é uma realidade autónoma. Ela observa-me com amargura. Quer falar, mas não consegue. Soluça. Tenta de novo.

– Um dia, mais cedo do que pensas, irás compreender o “porquê” do que se afigura absurdo.

Encaro-a enquanto se põe de pé novamente. Oscila e ondula sem se aperceber. Caminha para o lado direito do meu pai que é uma estátua angelical no universo tecnológico deste quarto do hospital. Toca a sua mão. Sustenho a respiração e quero impedi-la, mas não o faço. Fica parada e a sua figura começa a desvanecer, muito vagarosamente. Assisto enquanto o sopro de vida do meu progenitor atravessa a ponte dos mundos. O meu pranto inicia-se. Por ele, por ela, por tudo. Ela pede-me perdão com o sei sorriso nostálgico, de certeza que lembra os momentos que passámos juntos. Eu também os recordo. Recordo o meu pai, a minha mãe, ela, os erros e os sucessos de uma linha de tempo encurralada pelo trauma.

Momentos depois, foram-se. Ouço o “bip” característico da morte. As máquinas também sabem que o meu pai faleceu. Acorrem ao quarto dois médicos apressados. Uma enfermeira empurra-me para fora da divisão. Chama um médico e diz-lhe que estou em choque, pois aparentemente não respondo as suas perguntas. Não os ouvi sequer. Apenas quero estar sozinho.

*

Dez anos passaram desde a sua morte. A manhã é ainda escura como a madrugada. Mantenho-me de pé; um ramo de flores brancas é “abraçado” por mim. Vêm-me à memória imagens da última vez que aqui vim com o meu pai. Não me revolto, nem choro. Ele está com a minha mãe, para sempre juntos no eterno lugar dos seres. Recordo também o último dia no hospital e as palavras da Morte, que tanto me perturbaram  na altura. Mas como a água que acalma depois do toque da gota, também eu sou agora, pela primeira vez desde os meus seis anos, sereno. Toda a sequência de eventos passados era necessária para a minha catarse. Percebo isso. Tinha de libertar-me das recordações do meu pai, da minha mãe, dela. Só assim viveria a minha vida. Foi por isso que fui a única pessoa a vê-la, senti-la, amá-la – para que pudesse deixá-la partir e para que com ela partisse tudo o que me assombrava.

Os contornos das sepulturas são agora mais perceptíveis e sei que é a altura de deixar o presente que trouxe aos meus pais: as flores. Elas representam a minha eterna saudade mas também o meu agradecimento por, à sua maneira, me terem moldado na pessoa que sou.

Lanço um último olhar à sua fotografia na laje e sopro-lhes um beijo. Parece que nem todos os ciclos são viciosos. Aqui estou eu, de novo, e sinto que a minha vida não é uma frase inacabada, suspensa. Ela tornou-se algo melhor, maior, mais divino. Deixo as considerações e atravesso o portal de volta ao mundo dos vivos. O céu já está claro e isso assusta-me. Não posso atrasar-me, a minha nova família precisa de mim, e o mundo também.

 

Inês Maia, 12.º A


publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Terça-feira, 22 Março , 2011, 10:25

 

A Inês Maia, aluna do 12.º A, tem o prazer de convidá-lo(a) para a sessão de lançamento do seu livro Desafio Celestial, a decorrer na próxima sexta-feira,  dia 25 de Março, pelas 18h00, no Auditório de Música do Colégio.

Contamos com a presença de todos.

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publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Terça-feira, 22 Março , 2011, 10:23

6.ª Parte

 

Caminhamos lado a lado, à beira-mar. O Sol está quase a nascer, pelo que os contornos da realidade material são ainda um pouco indefinidos. A praia está vazia, só nós percorremos as suas areias. Tenho falado muito com ela. Prefere ser chamada Sofia; foi o nome que escolheu para si. É impressionante como é doce a sua índole. Estava sequiosa de palavras, desejosa de um toque. Sim, porque eu consigo senti-la: gelada como a brisa de Inverno e ela sente-me quente como o Sol de África. Contou-me as suas viagens, transmitiu-me os seus receios, murmurou-me os segredos da existência. Ouvi-a. Esquecemos o meu pai ou, pelo menos, tentámos. Sabemos que há uma decisão a tomar mas adiamo-la convenientemente com uma mudança de assunto numa qualquer conversa. Tornei-me quase imortal nos últimos dias. A sua presença afasta de mim as exigências da vida biológica. Não como, não durmo. Contei-lhe tudo acerca de quem fui depois de a ver. Confessei todos os pensamentos deturpados, os silêncios cortantes que partilhava com o meu pai. Disse-lhe que chegara a pensar que era bom o que acontecera com ele. Que assim éramos capazes de estar juntos sem o silêncio nos incomodar. Pelo contrário, seria como o pano de fundo ideal dos nossos encontros. Ela ouviu-me.

Quando a encaro, neste preciso momento, vejo os seus olhos cobertos por um fino pano de água que o vento gélido, como ela, faz aparecer nas suas safiras. Só mais um passo para este mundo e ela seria como eu. Ficaria comigo, ela própria uma vítima do Destino. E que vítimas tão felizes seríamos nós. Mas ela não pode dar esse passo. Eu não esperei que tal fosse possível. Apenas sonhei.

– Sentes o cheiro a mar? – pergunto, pois os seus olhos contemplam o oceano.

– Sim – responde – Quero memorizá-lo bem.

Sorrio. Coloco o meu braço em volta dela, que se encolhe para encaixar no espaço que criei. Os seus lábios movem-se mas o som não se propaga, pois hesitou. Apenas da primeira vez, porque da segunda consigo ouvi-la perfeitamente:

– Sei que não devia, mas não consigo deixar de te amar.

As suas palavras ecoam pelo meu ser. A felicidade é uma certeza. No entanto, receio saber o desfecho da nossa história. É um cliché, eu sei, mas o meu desejo era que o tempo parasse e não ficamos mais reféns submissos dele.

 

Inês Maia, 12.º A


publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Quarta-feira, 23 Fevereiro , 2011, 12:00

5.ª Parte


– Não, não… - murmuro e a minha cabeça balança impetuosamente.

Se tudo decorre na fugacidade do presente é porque a incerteza do futuro final é certa. E quando o agora acaba, ela recebe-nos com o seu abraço definitivo.

– É a morte, não é? É isso? – um fio de voz vacilante escapa da minha garganta. O meu olhar está turvo e vejo-a como um reflexo num lago.

– Sim, sou.

Solto uma gargalhada confusa e respiro profundamente. O seu aroma inebriante atinge-me e quase desfaleço. A compreensão da situação em que estou deixa-me desconcertado. Não duvido mais dela, nem de mim, nem de ninguém. Sei que diz a verdade, foi por isso que visitou a minha mãe e agora… o meu pai. É por isso que está cá. Por tantos anos lancei os braços para a vida esperando que ela me dissesse a verdade que eu já sabia, mas negava. Sinto ódio e revolta contra ela; não tinha o direito de roubar a minha alma imaculada e transformá-la numa âncora de chumbo. Ao mostrar-me o que está para lá da realidade condenou-me a uma existência sem conteúdo.

– Vou levar o teu pai. Lamento – afirma com pesar, como se pudesse sentir.

– Agora que juntei todos os pontos, não era preciso comunicar-me essa informação evidente – respondi, desafiando o Fado, qual cavaleiro destemido.

O seu corpo relaxa, consigo ver os ombros a descaírem. Quão ridícula parece naquele corpo adolescente. Se fosse humana poderia ter 16, 17 anos. É suposto o seu aspecto frágil apaziguar as almas? Detecto a desilusão nos seus olhos, ou está a minha mente a tentar humanizá-la? É como se quisesse transformá-la numa alegoria, algo tangível, material.

– Quanta amargura nas tuas palavras… Deves lembrar-te que eu sou o peão no jogo de xadrez e não a jogadora.

Proferiu aquelas palavras como uma sentença, como se nada pudesse fazer para mudar o destino. Não acredito.

– Pretende acalmar-me? Pois digo-lhe que é demasiado tarde. Tudo acabou no dia em que a vi.

Ela ressente-se com as palavras que a ferem diante de mim. Aquela criatura tão poderosa, rainha do destino, estremeceu quando falei. A culpa toma conta de mim e esqueço-me de quem ela é. Só consigo pensar em pedir-lhe perdão pelo que disse. Ainda estamos sentados lado a lado.

– Já pensaste como é solitário o destino inevitável do próprio destino? Ser para sempre condenada a ver viver e nunca viver? É uma tempestade que nunca acaba em bonança. Todos os dias exerço o meu próprio fim, porque só assim o mundo continua. Sempre foi assim, sempre será. Eu sei que queres perguntar o “porquê” de tudo isto. Nem eu própria o sei.

Parece-me confusa, mas genuína. Com a mente inerte e o corpo a agir como um autómato, a minha mão desliza para a sua, que repousa no regaço. Fica agitada mas aceita, por fim, o meu gesto.

– Lembro-me bem desse dia. Estavas no corredor. Os teus caracóis eram a moldura da tua face. Sabia que me verias. As crianças têm a capacidade de atravessar o véu repressor da realidade. Imaginei o teu sofrimento, mas pensei que o tempo apagaria os vestígios. Não consigo, nem podia ter adivinhado o futuro. Levei a tua mãe, mas não me esqueci de ti, David. Quando soube que era altura do teu pai partir, pensei que te encontraria de novo, mas tu não me verias. Ansiei pela tua chegada naquela noite. Por algum motivo, sempre foste especial. Vi-te no carro e reparei que me olhavas também. Pensei que contemplavas o vazio mas não pude ter a certeza. Foi por isso que passei por ti, no corredor do hospital. Queria que me ignorasses, queria ser apenas um conjunto de partículas de ar pelas quais caminhas sem reparar. Mas isso não aconteceu. Viste-me. A partir desse momento sabia que tinha de falar contigo. 

Quero abraçá-la, sentir o seu desespero a banhar a alma que nunca foi minha desde que os meus olhares pousaram sobre ela. No entanto, detenho-me. Permanecemos na espera que só a revelação da verdade permite ultrapassar.

 

Inês Maia, 12.º A


publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Sexta-feira, 11 Fevereiro , 2011, 12:26

Brevemente, será lançada pela Editorial Presença a obra Desafio Celestial, desenvolvida pela aluna Inês Maia do 12.º A. Mais novidades acerca da data de lançamento e consequentes apresentações do livro serão divulgadas durante o mês de Fevereiro. Segue-se, agora, a sinopse da obra para aguçar a curiosidade dos leitores.

Desafio Celestial

 

Quando o anjo Gabriel é informado de que lhe foi confiada uma importante missão na Terra nem quer acreditar na sua pouca sorte. Não lhe apetecia mesmo nada deixar o conforto do Paraíso para ir aturar os humores instáveis dos humanos. Mas a verdade é que os desígnios de Deus não se podem contrariar, e é assim que Gabriel se vê no corpo de um atraente jovem de quinze anos que tem pela frente a árdua tarefa de trazer de volta ao bom caminho Lisa Albuquerque, uma jovem rica da alta sociedade portuense, que anda a ser tentada pela terrível Amanda, um demónio que se faz passar por sua amiga e está prestes a fazê-la cair nas mãos do Senhor das Trevas. Conseguirá Gabriel salvar a alma de Lisa? E, se o conseguir, será capaz de se afastar dela, agora que está perdidamente apaixonado? Um romance divertido e misterioso, onde o mundo dos anjos e o das novas tecnologias se harmonizam na perfeição para criar uma atmosfera de grande originalidade.

 

© Inês Maia e Editorial Presença

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publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Sexta-feira, 11 Fevereiro , 2011, 12:16

4.ª Parte


Deixei de ir ao hospital todos os dias. “Tem de continuar a sua vida”, dissera-me o médico num tom quase mecânico, quase como se tivesse ensaiado ou dito aquela frase tantas vezes que se esquecera do seu sentido. Mas tinha razão e eu ouvi-o. Quis acreditar que o meu pai, se ao menos o destino deixasse, diria exactamente a mesma coisa.

Trabalho no departamento financeiro de um dos grandes bancos de Portugal, sou economista. Assim que acabei a universidade fui imediatamente recrutado por esta instituição. A meu ver, tentei colmatar a falta de afectividade na minha vida aplicando-me mais na minha vida escolar e, por isso, sempre fui o aluno modelo. Penso que também sempre quis chamar a atenção do meu pai através desta vertente da minha vida. No entanto, falhei profundamente. A cada nota exemplar que mostrava ao meu pai seguia-se um leve aceno da sua fronte enrugada, solitário e nada reconfortante. Tudo o que alguma vez fiz nunca foi reconhecido por ele; odiou-me pelo que disse naquele dia… Por muito que tente parece que toda a minha vida se construiu em redor dessa ocorrência, da pequena conversa que tive com aquela rapariga que não consigo tirar da cabeça.

Tenho muitos sentimentos contraditórios relativamente a ela, embora, e ao contrário do que seria natural, não sinta medo, mas sim um fascínio que sei ser errado. Será possível odiar e amar algo ao mesmo tempo? Ela é uma antítese para mim, um paradoxo da realidade. A sua doçura naquele dia lembra-me a inocência que tinha enquanto criança mas, e ao mesmo tempo, lembra-me também a perda desse sentimento infantil que tanto prezava. Considero a minha insanidade; ela aparece quando a inquietude toma conta de mim. Nunca pensei em procurar ajuda profissional, pois seria de certeza ridicularizado e rotulado. Mas a razão central pelo qual não o fiz, por muito que a tente dissimular, é o facto de acreditar que ela é real. Tenho medo por mim. Quando pensava que a tinha esquecido, ela reaparece, vinda do nada. A sua voz soa tal como a lembrava, está perfeitamente preservada – a pele, os olhos – e é uma recordação imutável do meu marcador somático.

Estou em casa. A luz quente e cítrica do pôr-do-sol de Novembro penetra pela minha sala, iluminando-a momentaneamente. As sombras dançam devido ao vento cortante no exterior que faz as árvores moverem-se como bailarinas disciplinadas de uma qualquer representação musical. O fogo da lareira crepita e o odor característico da madeira queimada sente-se por toda a casa. Uma súbita vontade de beber algo quente vem à minha cabeça, de sentir o aconchego que umas mãos que abraçam e dizem que “tudo vai correr bem” podem transmitir. Visto que a segunda opção não me é possível, decido-me pela primeira. Por esta obrigatoriedade de escolha não posso culpar ninguém para além de mim próprio. Constantemente afastei todos aqueles que gostavam de mim. Tive uma namorada durante cerca de três anos. Era uma rapariga simpática, doce e de alma pura. O ano passado acabei a relação; percebi finalmente que não estava disponível para partilhar os lugares mais inexplorados do meu ser, e amar alguém significa isso mesmo. Ficou destroçada. Lembro-me do dia em que lhe disse que mentira acerca de mim, que aquela felicidade não era mais do que uma máscara que tinha aprendido a usar, que nunca poderíamos ser mais do que meros conhecidos, por muito tempo que passássemos juntos. Dói-me não ter ninguém com quem partilhar bons momentos, mas sei que mantê-la comigo seria egoísmo genuíno.

Aqueço uma caneca de leite à qual adiciono uma pequena colher de mel. Quando volto para a sala, a única luz visível é a que provém da madeira a arder violentamente na lareira. Aproximo-me do cadeirão que contempla a vista melancólica da luz intermitente do candeeiro da rua. Caminho lentamente, por detrás do mesmo, e antes de atingir o abraço confortável do seu tecido ouço um som cortar o silêncio:

– A vida é muito agradável, vista daqui.

O meu coração pára. É a sua voz, de novo. Os meus pés recusam-se a mover-se na direcção previamente determinada. A minha respiração torna-se pesada e uma pressão horrenda abafa os meus pulmões.

Levanta-se de um salto, num gesto divertido, e contorna o cadeirão, retirando-me a caneca das mãos antes que a deixasse cair. A textura suave dos seus dedos delicados e pálidos entra em contacto com a minha pele. Um arrepio percorre a minha coluna.

– Quem é a senhora?! – pergunto num misto de terror e curiosidade insaciável. Dou três passos atrás.

– Tu sabes quem sou – murmura; um sorriso é desenhado na sua face.

Os meus músculos contraem-se e o meu pensamento suspende-se. Sei que estou a ter uma alucinação, só pode ser.

– Sabes o que é engraçado? Continuas exactamente igual a quem eras. Ainda consigo ver o pequenino rapaz que foste.

O meu coração retoma o batimento. A minha camisola está colada à pele, envolta numa mistela pegajosa de suor.

– Recuso-me a falar com alucinações – declaro em voz alta.

– Sabes bem que não sou uma alucinação. Estou mesmo aqui, à tua frente.

Hesito e deambulo pela sala. O seu olhar segue-me e posso jurar que a sua figura é feita de cristal.

– Muito bem, vamos supor que tem razão. Eu não creio que saiba quem é a senhora, porque me persegue, nem porque não envelhece. Pode esclarecer-me?

Suspira e afunda-se num dos sofás da sala. A sua mão repousa sobre o assento vizinho e bate nele ao de leve, como a fazer-me um convite. Tenho de admitir que a ideia da sua proximidade me agrada. Obedeço-lhe.

– Quero contar-te um segredo, chega-te para mim – diz e as suas mãos tocam a minha face.

Inclino-me suavemente e penso que perdi a cabeça, ou estou a sonhar.

– Apenas os seres materiais têm o direito de mudar e envelhecer – os seus lábios dançam nas proximidades da minha orelha – E eu não sou um ser material.

Afasto-me da sua face e tenho a sensação de que aquela sala me vai engolir. Demoro a interpretar aquelas palavras mas, quando o consigo fazer, elas atingem-me como um relâmpago. Tudo se torna claro como água.

 

Inês Maia, 12.º A


publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Sexta-feira, 04 Fevereiro , 2011, 11:58

 

3.ª Parte


Uma semana passou desde o seu aniversário. Conduzo controladamente para a casa do meu pai. É sexta-feira à noite e o cansaço faz-me ver formas indefinidas pelo vidro do meu automóvel. O vento uiva e a inquietude dos pensamentos faz-se notar na minha pele arrepiada que antecipa a ausência de palavras no reencontro com o meu progenitor ou, pior do que isso, a habitual conversa de circunstância.

Já me encontro nos subúrbios e consigo avistar, bem no fundo da avenida ladeada por carvalhos, o telhado da casa. Quando me aproximo sou invadido pela organoléptica de uma situação que não compreendo. As luzes azuis intermitentes rasgam o breu negro da noite agoirenta, e o som estridente das sirenes ensurdece-me momentaneamente. E vejo-a. Num fugaz momento frio e desolado, suspenso na linha da minha história. Desvio o olhar por um segundo e a sua figura esfumara-se no ar. Saio do carro e corro para a ambulância sem reflectir, apenas obedecendo às ordens do meu “instinto humano”.

– O que se passou? – consigo ouvir-me perguntar; a minha voz rouca interrompe as sirenes.

– É familiar deste senhor? – questiona o paramédico a quem me dirigi.

– Sim, sou o filho.

– Acidente Vascular Cerebral. Ainda bem que o seu pai estava acompanhado, caso contrário poderia ter morrido.

Olho em volta e vejo o rosto conhecido da Dona Cíntia, a empregada da casa. Está lavada em lágrimas e sustenta todo o seu peso contra o muro das vedações.

Estou desorientado e tento compreender as implicações desta situação. Sinto o chão a desfazer-se por baixo dos meus pés, tal é a instabilidade do meu pensamento.

– Mas ele está bem? – quando acabo de formular a interrogação, ela afigura-se-me ridícula.

– Ele está inconsciente e ainda não temos maneira de saber até que ponto se estendem os seus danos cerebrais.

A resposta é tão insatisfatória. No entanto, aceno levemente, como o meu corpo me permite, e salto para dentro da ambulância.

 

Os médicos dizem que o meu pai está em coma. Observo-o do cadeirão e a sua figura parece-me mais branda do que alguma vez fora. Por momentos agradeço a Deus esta oportunidade de partilhar a mesma sala com ele sem o silêncio coactivo, apenas com uma ausência de palavras reconfortante. Arrependo-me no instante seguinte; não tenho o direito de pensar tal coisa. Detesto não saber como toda esta situação vai acabar, pois o enigma é o que mais odeio. Nunca discutimos verdadeiramente aquele dia; remetemos para os recônditos da alma o que sentíamos. Lamento não o ter feito, mas agora é tarde. Saio para o corredor e o mesmo está completamente deserto. O relógio diz-me que faltam treze minutos para as quatro da manhã. O caminho está envolto em penumbra e a intensidade luminosa é pouca. Dou passadas largas de um lado para o outro do corredor. As minhas pernas estavam completamente dormentes. Ouço um suave deslizar de um material leve, talvez seda. Viro-me e contemplo-a. Ela, outra vez. Entreolhamo-nos. As duas safiras profundas do seu rosto mostram surpresa. Estaca à minha frente e vira para a direita, quase na esperança de que eu não a veja.

– Ei, posso ajudá-la? – pergunto. O meu coração bate descompassadamente.

Pára e o seu corpo endurece como uma estátua de mármore negro. Hesita e volta-se para mim, incrédula.

– Penso que não – replica a sua voz como a lembrava: breve, leve, suave.

Não sei o que fazer, pensar ou sentir. Quem é aquela figura sinistra? Um caleidoscópio de emoções assola-me quase de imediato. Ódio, curiosidade, surpresa, confusão… Corro e agarro-lhe o braço violentamente. A sua expressão é de admiração e apenas nessa altura reparo na magreza extrema do seu corpo e no frio; como se todo o seu ser estivesse impregnado de cristais de gelo.

– Agradecia que me largasse o braço – pediu, ou melhor, ordenou de uma forma inflexível.

– Não o farei enquanto não me disser o que está aqui a fazer.

Os seus olhos encontram os meus e trazem à minha memória os eventos do dia que mais tentei esquecer. Uma dor lancinante atinge o meu cérebro e é de tal forma veemente que me faz cambalear contra uma das paredes do corredor. Ela fita-me com compaixão, e continua a caminhar.

– Não, espere, não!

O meu grito corta o silêncio da noite na catedral da moléstia.

 

Inês Maia, 12.º A


publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Quarta-feira, 19 Janeiro , 2011, 22:51

 

 

Camões volta a cruzar o horizonte dos alunos, desta vez no 12.º ano, a partir do estudo de Os Lusíadas. Eis o documentário produzido pela RTP sobre este texto épico e sobre o autor.

 

 

  

   

 

 

 

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

[Os títulos dos livros devem surgir sempre em itálico (ou sublinhados). Assim, no título deste post deveria surgir Os Lusíadas. A formatação do blogue não permite, contudo, colocar palavras em itálico ou sublinhadas nos títulos dos posts.]

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publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Quarta-feira, 05 Janeiro , 2011, 06:36

Presente


2.ª Parte


Fui visitá-la hoje. É o dia do seu aniversário, ou pelo menos seria. A madrugada era quase manhã, de tal forma que a tapeçaria atmosférica apresentava ainda tons dignos de um filme Noir. O meu pai acompanhou-me, sempre sorumbático, humor característico desta ocasião. Entreolhamo-nos várias vezes de forma fugaz e é impressionante como uma acção tão limitada no tempo pode encerrar em si milhares de pensamentos, ressentimentos e omissões. Tentei não reflectir demasiado, não decifrar o código que é todo o seu semblante e a sua índole. Como era bom quando não o tinha de fazer; se ao menos a nostalgia pudesse materializar os desejos seria de novo feliz e livre do peso do mundo, do peso daquele dia, do peso do poiso do olhar do “papá” sobre os meus ombros. É quase insuportável. Ainda guarda aqueles ressentimentos, tenho a certeza. Por causa do que lhe contei, naquele dia…

Caminhámos lado a lado, o som da gravilha fazia-se ouvir por baixo dos nossos pés e apenas parámos diante da campa da minha mãe. A laje estava imaculada, pois a chuva limpara todos os resíduos poeirentos e vis que a Natureza teima em lhe colocar. O meu pai trazia um ramo de rosas brancas, que eram as preferidas da minha mãe (ela sempre apreciara a sua pureza e a sua milimétrica perfeição), e pousou-as delicadamente na pedra granítica que surgia no recorte do pavimento.

Ficámos inertes por minutos. Um bando de rolas selvagens sobrevoava o cemitério em círculos, contrariando o ar macabro e constrangedor de todo aquele lugar. Uma lágrima solitária deslizou pelo rosto do meu pai, que se esforçou por a esconder, em vão. Eu, por outro lado, não conseguia ter qualquer tipo de sentimento de saudade ou perda.

Ela fora uma estranha para mim. A sua doença não a tinha permitido acompanhar-me e tinha-a condenado à permanente clausura no seu quarto-cela. Menti; eu senti algo quando a visitei hoje. Senti fúria. A sua morte mudara o meu pai por completo e, por qualquer motivo desconhecido para mim, ele sempre me odiara por causa dela. Penso que foi por lhe ter dito o que vi naquela tarde, aquela mulher… Deve ter pensado que eu queria troçar dele e que não compreendia, nem queria compreender, a dor pela qual ele estava a passar. “A tua mãe acabou de morrer e atreves-te a balbuciar mentiras?!”, exclamou em ira. Comecei a chorar, ainda não sabia o que acontecera. “Mas não é uma mentira!”, disse eu. A sua expressão endureceu e a sua mão embateu com a força de mil vendavais na minha face. Foi assim.

Fomo-nos embora quando o manto de nuvens matinais se dispersou. Não dissemos uma única palavra na viagem do cemitério até a casa do meu pai.

– Até amanhã – disse-me ele.

– Eu ligo-te, mais tarde, para saber como estás – respondi num murmúrio.

Acenou levemente e desapareceu no interior da casa que, em tempos, me amaldiçoara a existência.

 

Inês Maia, 12.º A


publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Quinta-feira, 09 Dezembro , 2010, 05:22

 

«A morte é a libertação da alma.»

 

15 de Outubro de 1986


Há dias que permanecem na nossa memória como uma sombra ou uma nuvem negra num dia de Inverno. No entanto, por vezes, o nosso inconsciente “prega-nos uma partida” e perfura essa massa de ar quente cheia de incógnita como um insolente raio de Sol que insiste em tornar lúcido o que devia ser insano. Este foi um desses dias. Foi fatídico, importante, esquecido e relembrado vezes sem conta no pano de tempo que se seguiu. Maldito.

 

Estava de pé, hirto, naquele corredor que tantas vezes percorrera em seis anos de vida. A sombra cinzenta das árvores que dançavam ao sabor do vento no exterior provocava-me uma sensação de melancolia angustiante. Não um sentimento consciente, mas sim algo inexplicável que pulsava nas minhas veias sem controlo que o pudesse congelar. Uma brisa cortou o ar do corredor e envolveu-me sem aviso. Perscrutei as cinco portas que recortavam as paredes do corredor e constatei que cada uma delas, sem excepção, se encontrava “selada”. O papá tinha saído e pedira-me para ficar atento no caso de a mamã precisar de ajuda. Estava muito frio, tanto frio que a minha circulação parava nas extremidades do corpo. Os meus pés estavam dormentes e, sentando-me numa das poltronas, levei-os às minhas mãos, friccionando-os. Essa acção provocou um aumento de temperatura significativo que me invadiu como uma onda de bem-estar momentânea.

 

Era tão puro naquela altura, tão inconsciente da minha inconsciência e, por muito absurdo que possa parecer, dava tudo o que possuo e o que alguma vez possuirei para voltar a ser quem fora até esse dia. Tornar-me de novo nessa criança que via apenas possibilidades na vida e ignorava os mistérios da existência. Mas sei que tais ideias são apenas desejos que não podem ser cumpridos.

 

Esperei no corredor pelo papá. Havia uma eternidade que ele partira. Já não acariciava os meus pés; o calor tinha voltado a flutuar sobre a epiderme. Brincava nervosamente com os meus dedos das mãos, num bailado irregular e selvagem, que mostrava claramente o estado do meu espírito. Nesse preciso momento, ouvi a mamã suspirar muito alto. A porta do seu quarto ainda estava fechada, mas era impreterível, para mim, que fosse ver se ela precisava de algo, talvez um chá para descansar melhor…

 

Levantei-me e dirigi-me à porta. Dei apenas dois passos até sentir o seu toque leve, sinistro, pacífico. Voltei-me e a sua figura alta engoliu-me por completo. A sombra devorou o meu corpo de criança e fiquei envolto em escuridão.

 

– David, onde está a mamã? – perguntou. Os seus olhos inquisitivos estavam cobertos por uma bruma imaginária que pincelava a íris.

 

Tinha aparecido do nada em minha casa. A sua figura era a de uma rapariga jovem de longos cabelos castanho-escuros, perfeitamente lisos e brilhantes. As suas mãos esguias repousavam junto ao corpo, acariciando-o enquanto gesticulava a pergunta. Dada a minha tenra idade, ou o fascínio que despertava em mim, não se formou na minha mente a ideia de inquirir acerca da sua identidade, limitando-me a levantar o braço em direcção às portas do quarto da minha mãe e a olhar mais uma vez para os poços que tinha em lugar dos globos oculares.

 

– Obrigada.

 

Uma das suas mãos abandonou o aconchego do toque com o seu corpo e abriu caminho até à minha nuca, acariciou-me, agitando os meus fartos caracóis loiros como flores ao vento. Sorriu, transpôs a porta para ir ter com a mamã e desapareceu.

 

Inês Maia, 12.º A


publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Segunda-feira, 22 Novembro , 2010, 18:20

O tema foi lançado nas aulas de Português durante o estudo da poesia de Fernando Pessoa ortónimo: uma reflexão sobre a importância da inteligência na construção da felicidade. O resultado foi bastante positivo, como se pode ver pelo texto que se segue.

 

A inteligência, no seu entendimento como característica inerente a todo o ser racional, concede à Humanidade uma elevada capacidade para compreender e, inclusive, modelar o mundo envolvente. É, portanto, indispensável para uma persistente melhoria da qualidade de vida do Homem, perspectiva segundo a qual a inteligência poderá ser entendida como proporcionadora de felicidade. Contudo, o indivíduo detentor de uma razão muito activa é severamente restringido no que diz respeito a ser feliz. Pretende-se com isto dizer que o pensamento abundante interfere destrutivamente com a alegria pessoal.

 

Em primeiro lugar, esta constatação poderá ser entendida atendendo a que a inteligência se traduz numa intensa consciência; uma noção de questões tais como a passagem do tempo, a efemeridade de tudo e a inevitabilidade da morte. O sujeito pensante apercebe-se de que vive num presente e de que existe um futuro indefinido, mas ao qual não pode escapar, que, mais cedo ou mais tarde, porém, sempre significa fim. E analisar a realidade na sua finitude é invariavelmente entristecedor, já que se deixa de desfrutar o momento, com a constante preocupação do final e o aparecimento da saudade. Assim sendo, a título exemplificativo, poder-se-á referir que toda esta consciência conduz à frustração, porque, sendo a vida tão breve, o conhecimento é sempre limitado, impossível na totalidade; por outro lado, a vivência individual adquire uma certa insignificância, face à vastidão (temporal e espacial) do Universo.

 

Também a falta de espontaneidade é consequência da razão excessiva. Revela-se numa incapacidade de sentir de modo exclusivo, devido a uma necessidade de racionalizar toda a emoção. Esta situação está patente, por exemplo, em Fernando Pessoa ortónimo, que, por ser demasiado racional, se debate com uma “dor de pensar”. O sentimento é imediatamente intelectualizado, o que o impede de apreciar os instantes e, consequentemente, condiciona a sua felicidade.

 

Em suma, a inteligência é, frequentemente, e por motivos diversos, inviabilizadora da felicidade. No entanto, talvez uma dosagem da sua utilização permita retirar alguma inacessibilidade à alegria individual.

 

Rafael Amorim Rocha, 12.º B


publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Quarta-feira, 27 Outubro , 2010, 23:53

 

 

Há precisamente quatro anos, teve início na RTP1 o programa "Os Grandes Portugueses", no qual Fernando Pessoa foi um dos dez finalistas, medindo forças com o autor de Os Lusíadas, que celebrou o "ilustre peito lusitano", e com Vasco da Gama, figura de proa do sonho marítimo lusitano. Na final, transmitida no dia 25 de Março de 2007, foi, porém, o político António de Oliveira Salazar, Presidente do Conselho de Ministros por mais de 40 anos, o vencedor, com 41% dos votos.

 

Fica, aqui, o vídeo de "candidatura" de Pessoa, eloquentemente apresentado por Clara Ferreira Alves, jornalista e escritora portuguesa, que, entre 2000 e 2004, foi Directora da Casa Fernando Pessoa e que "ressuscitou" a revista Tabacaria.

 

 

 

 
 
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publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Terça-feira, 26 Outubro , 2010, 19:30

Aqui fica o documentário produzido pela RTP sobre o Livro do Desassossego, Fernando Pessoa e Bernardo Soares, autor das palavras que dão o nome a este blogue.

 

 

 

 

 

 

 

[Os títulos dos livros devem surgir sempre em itálico (ou sublinhados). Assim, no título deste post deveria surgir Livro do Desassossego. A formatação do blogue não permite, contudo, colocar palavras em itálico ou sublinhadas nos títulos dos posts.]

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publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Quinta-feira, 07 Outubro , 2010, 15:22



Excertos de “O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro, declamados por Mário Viegas.


Como se pode ver pelo rascunho do poema inicial, os poemas não foram escritos “a fio, numa espécie de êxtase”, como Fernando Pessoa assumiu em carta a Adolfo Casais Monteiro. Toda a escrita é um exercício de reescrita.

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