publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Sexta-feira, 11 Fevereiro , 2011, 12:16
4.ª Parte
Deixei de ir ao hospital todos os dias. “Tem de continuar a sua vida”, dissera-me o médico num tom quase mecânico, quase como se tivesse ensaiado ou dito aquela frase tantas vezes que se esquecera do seu sentido. Mas tinha razão e eu ouvi-o. Quis acreditar que o meu pai, se ao menos o destino deixasse, diria exactamente a mesma coisa.
Trabalho no departamento financeiro de um dos grandes bancos de Portugal, sou economista. Assim que acabei a universidade fui imediatamente recrutado por esta instituição. A meu ver, tentei colmatar a falta de afectividade na minha vida aplicando-me mais na minha vida escolar e, por isso, sempre fui o aluno modelo. Penso que também sempre quis chamar a atenção do meu pai através desta vertente da minha vida. No entanto, falhei profundamente. A cada nota exemplar que mostrava ao meu pai seguia-se um leve aceno da sua fronte enrugada, solitário e nada reconfortante. Tudo o que alguma vez fiz nunca foi reconhecido por ele; odiou-me pelo que disse naquele dia… Por muito que tente parece que toda a minha vida se construiu em redor dessa ocorrência, da pequena conversa que tive com aquela rapariga que não consigo tirar da cabeça.
Tenho muitos sentimentos contraditórios relativamente a ela, embora, e ao contrário do que seria natural, não sinta medo, mas sim um fascínio que sei ser errado. Será possível odiar e amar algo ao mesmo tempo? Ela é uma antítese para mim, um paradoxo da realidade. A sua doçura naquele dia lembra-me a inocência que tinha enquanto criança mas, e ao mesmo tempo, lembra-me também a perda desse sentimento infantil que tanto prezava. Considero a minha insanidade; ela aparece quando a inquietude toma conta de mim. Nunca pensei em procurar ajuda profissional, pois seria de certeza ridicularizado e rotulado. Mas a razão central pelo qual não o fiz, por muito que a tente dissimular, é o facto de acreditar que ela é real. Tenho medo por mim. Quando pensava que a tinha esquecido, ela reaparece, vinda do nada. A sua voz soa tal como a lembrava, está perfeitamente preservada – a pele, os olhos – e é uma recordação imutável do meu marcador somático.
Estou em casa. A luz quente e cítrica do pôr-do-sol de Novembro penetra pela minha sala, iluminando-a momentaneamente. As sombras dançam devido ao vento cortante no exterior que faz as árvores moverem-se como bailarinas disciplinadas de uma qualquer representação musical. O fogo da lareira crepita e o odor característico da madeira queimada sente-se por toda a casa. Uma súbita vontade de beber algo quente vem à minha cabeça, de sentir o aconchego que umas mãos que abraçam e dizem que “tudo vai correr bem” podem transmitir. Visto que a segunda opção não me é possível, decido-me pela primeira. Por esta obrigatoriedade de escolha não posso culpar ninguém para além de mim próprio. Constantemente afastei todos aqueles que gostavam de mim. Tive uma namorada durante cerca de três anos. Era uma rapariga simpática, doce e de alma pura. O ano passado acabei a relação; percebi finalmente que não estava disponível para partilhar os lugares mais inexplorados do meu ser, e amar alguém significa isso mesmo. Ficou destroçada. Lembro-me do dia em que lhe disse que mentira acerca de mim, que aquela felicidade não era mais do que uma máscara que tinha aprendido a usar, que nunca poderíamos ser mais do que meros conhecidos, por muito tempo que passássemos juntos. Dói-me não ter ninguém com quem partilhar bons momentos, mas sei que mantê-la comigo seria egoísmo genuíno.
Aqueço uma caneca de leite à qual adiciono uma pequena colher de mel. Quando volto para a sala, a única luz visível é a que provém da madeira a arder violentamente na lareira. Aproximo-me do cadeirão que contempla a vista melancólica da luz intermitente do candeeiro da rua. Caminho lentamente, por detrás do mesmo, e antes de atingir o abraço confortável do seu tecido ouço um som cortar o silêncio:
– A vida é muito agradável, vista daqui.
O meu coração pára. É a sua voz, de novo. Os meus pés recusam-se a mover-se na direcção previamente determinada. A minha respiração torna-se pesada e uma pressão horrenda abafa os meus pulmões.
Levanta-se de um salto, num gesto divertido, e contorna o cadeirão, retirando-me a caneca das mãos antes que a deixasse cair. A textura suave dos seus dedos delicados e pálidos entra em contacto com a minha pele. Um arrepio percorre a minha coluna.
– Quem é a senhora?! – pergunto num misto de terror e curiosidade insaciável. Dou três passos atrás.
– Tu sabes quem sou – murmura; um sorriso é desenhado na sua face.
Os meus músculos contraem-se e o meu pensamento suspende-se. Sei que estou a ter uma alucinação, só pode ser.
– Sabes o que é engraçado? Continuas exactamente igual a quem eras. Ainda consigo ver o pequenino rapaz que foste.
O meu coração retoma o batimento. A minha camisola está colada à pele, envolta numa mistela pegajosa de suor.
– Recuso-me a falar com alucinações – declaro em voz alta.
– Sabes bem que não sou uma alucinação. Estou mesmo aqui, à tua frente.
Hesito e deambulo pela sala. O seu olhar segue-me e posso jurar que a sua figura é feita de cristal.
– Muito bem, vamos supor que tem razão. Eu não creio que saiba quem é a senhora, porque me persegue, nem porque não envelhece. Pode esclarecer-me?
Suspira e afunda-se num dos sofás da sala. A sua mão repousa sobre o assento vizinho e bate nele ao de leve, como a fazer-me um convite. Tenho de admitir que a ideia da sua proximidade me agrada. Obedeço-lhe.
– Quero contar-te um segredo, chega-te para mim – diz e as suas mãos tocam a minha face.
Inclino-me suavemente e penso que perdi a cabeça, ou estou a sonhar.
– Apenas os seres materiais têm o direito de mudar e envelhecer – os seus lábios dançam nas proximidades da minha orelha – E eu não sou um ser material.
Afasto-me da sua face e tenho a sensação de que aquela sala me vai engolir. Demoro a interpretar aquelas palavras mas, quando o consigo fazer, elas atingem-me como um relâmpago. Tudo se torna claro como água.
Inês Maia, 12.º A