"Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas." (Bernardo Soares)
publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Quinta-feira, 09 Dezembro , 2010, 05:22

 

«A morte é a libertação da alma.»

 

15 de Outubro de 1986


Há dias que permanecem na nossa memória como uma sombra ou uma nuvem negra num dia de Inverno. No entanto, por vezes, o nosso inconsciente “prega-nos uma partida” e perfura essa massa de ar quente cheia de incógnita como um insolente raio de Sol que insiste em tornar lúcido o que devia ser insano. Este foi um desses dias. Foi fatídico, importante, esquecido e relembrado vezes sem conta no pano de tempo que se seguiu. Maldito.

 

Estava de pé, hirto, naquele corredor que tantas vezes percorrera em seis anos de vida. A sombra cinzenta das árvores que dançavam ao sabor do vento no exterior provocava-me uma sensação de melancolia angustiante. Não um sentimento consciente, mas sim algo inexplicável que pulsava nas minhas veias sem controlo que o pudesse congelar. Uma brisa cortou o ar do corredor e envolveu-me sem aviso. Perscrutei as cinco portas que recortavam as paredes do corredor e constatei que cada uma delas, sem excepção, se encontrava “selada”. O papá tinha saído e pedira-me para ficar atento no caso de a mamã precisar de ajuda. Estava muito frio, tanto frio que a minha circulação parava nas extremidades do corpo. Os meus pés estavam dormentes e, sentando-me numa das poltronas, levei-os às minhas mãos, friccionando-os. Essa acção provocou um aumento de temperatura significativo que me invadiu como uma onda de bem-estar momentânea.

 

Era tão puro naquela altura, tão inconsciente da minha inconsciência e, por muito absurdo que possa parecer, dava tudo o que possuo e o que alguma vez possuirei para voltar a ser quem fora até esse dia. Tornar-me de novo nessa criança que via apenas possibilidades na vida e ignorava os mistérios da existência. Mas sei que tais ideias são apenas desejos que não podem ser cumpridos.

 

Esperei no corredor pelo papá. Havia uma eternidade que ele partira. Já não acariciava os meus pés; o calor tinha voltado a flutuar sobre a epiderme. Brincava nervosamente com os meus dedos das mãos, num bailado irregular e selvagem, que mostrava claramente o estado do meu espírito. Nesse preciso momento, ouvi a mamã suspirar muito alto. A porta do seu quarto ainda estava fechada, mas era impreterível, para mim, que fosse ver se ela precisava de algo, talvez um chá para descansar melhor…

 

Levantei-me e dirigi-me à porta. Dei apenas dois passos até sentir o seu toque leve, sinistro, pacífico. Voltei-me e a sua figura alta engoliu-me por completo. A sombra devorou o meu corpo de criança e fiquei envolto em escuridão.

 

– David, onde está a mamã? – perguntou. Os seus olhos inquisitivos estavam cobertos por uma bruma imaginária que pincelava a íris.

 

Tinha aparecido do nada em minha casa. A sua figura era a de uma rapariga jovem de longos cabelos castanho-escuros, perfeitamente lisos e brilhantes. As suas mãos esguias repousavam junto ao corpo, acariciando-o enquanto gesticulava a pergunta. Dada a minha tenra idade, ou o fascínio que despertava em mim, não se formou na minha mente a ideia de inquirir acerca da sua identidade, limitando-me a levantar o braço em direcção às portas do quarto da minha mãe e a olhar mais uma vez para os poços que tinha em lugar dos globos oculares.

 

– Obrigada.

 

Uma das suas mãos abandonou o aconchego do toque com o seu corpo e abriu caminho até à minha nuca, acariciou-me, agitando os meus fartos caracóis loiros como flores ao vento. Sorriu, transpôs a porta para ir ter com a mamã e desapareceu.

 

Inês Maia, 12.º A


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