"Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas." (Bernardo Soares)
publicado por Departamento de Língua Portuguesa | Quarta-feira, 05 Janeiro , 2011, 06:36

Presente


2.ª Parte


Fui visitá-la hoje. É o dia do seu aniversário, ou pelo menos seria. A madrugada era quase manhã, de tal forma que a tapeçaria atmosférica apresentava ainda tons dignos de um filme Noir. O meu pai acompanhou-me, sempre sorumbático, humor característico desta ocasião. Entreolhamo-nos várias vezes de forma fugaz e é impressionante como uma acção tão limitada no tempo pode encerrar em si milhares de pensamentos, ressentimentos e omissões. Tentei não reflectir demasiado, não decifrar o código que é todo o seu semblante e a sua índole. Como era bom quando não o tinha de fazer; se ao menos a nostalgia pudesse materializar os desejos seria de novo feliz e livre do peso do mundo, do peso daquele dia, do peso do poiso do olhar do “papá” sobre os meus ombros. É quase insuportável. Ainda guarda aqueles ressentimentos, tenho a certeza. Por causa do que lhe contei, naquele dia…

Caminhámos lado a lado, o som da gravilha fazia-se ouvir por baixo dos nossos pés e apenas parámos diante da campa da minha mãe. A laje estava imaculada, pois a chuva limpara todos os resíduos poeirentos e vis que a Natureza teima em lhe colocar. O meu pai trazia um ramo de rosas brancas, que eram as preferidas da minha mãe (ela sempre apreciara a sua pureza e a sua milimétrica perfeição), e pousou-as delicadamente na pedra granítica que surgia no recorte do pavimento.

Ficámos inertes por minutos. Um bando de rolas selvagens sobrevoava o cemitério em círculos, contrariando o ar macabro e constrangedor de todo aquele lugar. Uma lágrima solitária deslizou pelo rosto do meu pai, que se esforçou por a esconder, em vão. Eu, por outro lado, não conseguia ter qualquer tipo de sentimento de saudade ou perda.

Ela fora uma estranha para mim. A sua doença não a tinha permitido acompanhar-me e tinha-a condenado à permanente clausura no seu quarto-cela. Menti; eu senti algo quando a visitei hoje. Senti fúria. A sua morte mudara o meu pai por completo e, por qualquer motivo desconhecido para mim, ele sempre me odiara por causa dela. Penso que foi por lhe ter dito o que vi naquela tarde, aquela mulher… Deve ter pensado que eu queria troçar dele e que não compreendia, nem queria compreender, a dor pela qual ele estava a passar. “A tua mãe acabou de morrer e atreves-te a balbuciar mentiras?!”, exclamou em ira. Comecei a chorar, ainda não sabia o que acontecera. “Mas não é uma mentira!”, disse eu. A sua expressão endureceu e a sua mão embateu com a força de mil vendavais na minha face. Foi assim.

Fomo-nos embora quando o manto de nuvens matinais se dispersou. Não dissemos uma única palavra na viagem do cemitério até a casa do meu pai.

– Até amanhã – disse-me ele.

– Eu ligo-te, mais tarde, para saber como estás – respondi num murmúrio.

Acenou levemente e desapareceu no interior da casa que, em tempos, me amaldiçoara a existência.

 

Inês Maia, 12.º A


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